Estudo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) investiga a segregação por renda per capita nos assentamentos informais do Brasil
Favelas são assentamentos informais populares com grande densidade demográfica localizados em periferias dos centros urbanos. São resultados de um processo de urbanização desordenado somado à segregação social que afasta os grupos mais vulneráveis. De acordo com a pesquisa Data Favela 2023, na última década o total de comunidades distribuídas pelos estados brasileiros, sobretudo em capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, dobrou. São 13.151 “aglomerados subnormais”, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define as ocupações irregulares em terrenos de propriedade alheia, de origem pública ou privada, com o fim de habitação. O termo atualmente passa por uma revisão pelo próprio órgão federal por ser considerado discriminatório.
Diferente do que muitos pensam, há variações de renda dentro destes espaços habitacionais. No estudo “Segregação na segregação: Assentamentos informais para além de áreas socialmente homogêneas”, Camila Carvalho e Vinícius Netto investigam a desigualdade econômica em assentamentos informais no Brasil. A pesquisa dá seguimento às abordagens sobre segregação analisadas pelo grupo Ciência das Cidades (City Science Group), do qual os pesquisadores fazem parte, e partiu da experiência de Carvalho como urbanista em um projeto da Prefeitura do Rio de Janeiro nas favelas do município. O período na ação a levou a buscar entender as diferenças dentro de uma comunidade e como a discriminação atuava em diferentes esferas urbanas. Assim, o artigo avalia três escalas principais: das regiões metropolitanas brasileiras, dos municípios e dos bairros. “A pesquisa parte de uma ideia que existe no senso comum de que as favelas são áreas homogêneas. Geralmente, entende-se a favela como um bloco homogêneo de pobreza, em que não há uma diferenciação interna”, avalia Carvalho.
Netto, professor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e orientador do projeto, traz que o objetivo é superar a noção de que a segregação residencial em favelas seja socialmente homogênea. “Seja em um bairro ou em um assentamento informal, o senso comum é que aquela área seria habitada por pessoas parecidas sob o ponto de vista de algum critério social. No caso da pesquisa, o interesse é na renda e também na raça”, esclarece o docente. A raça é considerada pelo perfil da população presente nas comunidades. Segundo pesquisa promovida pelo Instituto Locomotiva em parceria com o Data Favela e a Central Única das Favelas (Cufa), 67% das pessoas presentes nas favelas são negras, média acima da nacional, que é de 55%.
Comunidade do Vidigal, no Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro / Créditos: Tomaz Silva (Agência Brasil)
Outras características também poderiam ser utilizadas, “como a porcentagem de pessoas brancas”, Carvalho exemplifica. Para o artigo, a questão financeira foi escolhida pelo contato que a pesquisadora já possuía com o assunto. “Na minha tese de doutorado, trabalhei com renda e com a variável racial, mas considerei mais fácil para a análise de segregação partir da renda por uma questão do índice. O índice de renda varia muito mais que o índice racial”, esclarece. Para a análise racial, a urbanista explica que extraiu a quantidade de pessoas brancas para em seguida calcular a diferença da presença desse grupo em cada região da área estudada. “Isso variou de 1 a 0, enquanto a porcentagem de renda se alterava muito mais, então achei mais fácil trabalhar apenas com a diferenciação de renda. Como consegui dois grupos de renda (baixa e alta), avaliei neles a proporção de pessoas brancas, assim fizemos também uma análise racial”.
Os resultados obtidos revelaram que, no cluster (agrupamento) de baixa renda, há uma média de 27% de pessoas brancas, enquanto no cluster de alta renda há 36%. A variação é pequena porque nas comunidades a diversidade étnica geralmente é menor que nas cidades, muito em razão do processo de formação desses espaços informais e da segregação social enraizada na sociedade. Ainda assim, o estudo reforça que há uma proporção maior de pessoas brancas nas áreas de maior renda nas favelas, assim como ocorre nos centros urbanos. “Em uma favela a renda alta não é como pensamos na cidade, mas há uma renda mais alta em relação a outros contextos da comunidade. Podemos ter uma renda per capita de R$ 600,00 no setor de agrupamento de alta renda e metade disso no de baixa renda. Se formos pensar na escala da cidade, a variação é muito próxima, mas na escala das favelas faz diferença”, esclarece Carvalho.
Netto complementa que as pesquisas realizadas no país analisam os assentamentos informais a partir de um conjunto restrito, ou seja, consideram apenas uma dada comunidade, tornando o estudo aprofundado em um único local. A falta de trabalhos gerais sobre as comunidades dificulta análises das favelas de um estado ou de uma região como um todo. Diante da ausência de análises quantitativas, os pesquisadores buscaram trabalhar com dados oficiais do Censo Demográfico realizado pelo IBGE para conduzir uma investigação que avaliasse todas as comunidades do país. “Investimos nesse método que consegue lidar com muitos casos, então conseguimos olhar para cada favela do Brasil. Se quiséssemos olhar para casos em outros países, poderíamos fazer isso”, afirma o docente.
O estudo contemplou 42 assentamentos informais. Nessas áreas, a análise de segregação mostrou que pouco mais de um terço das favelas possuíam um valor de segregação significativo, considerando a renda dos seus habitantes. Além da comparação nas comunidades, os pesquisadores também realizaram uma avaliação em alguns municípios dos quais faziam parte as favelas observadas com mais atenção. Foram eles: Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília, São Luís, Manaus, Belém, Campinas e Porto Alegre, com o intuito de verificar se os resultados encontrados na escala das cidades se reproduziam na escalada das comunidades.
Policiais militares fazem operação na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, após guerra entre quadrilhas rivais de traficantes pelo controle da área / Créditos: Fernando Frazão (Agência Brasil)
A seleção dos municípios foi a partir dos assentamentos cuja medida de segregação apontou para um valor expressivo. Para o artigo, foi utilizado o Índice de Moran, que varia de 0 a 1 e calcula a relação de vizinhança entre os setores censitários. Assim, dividindo uma favela em vários setores, cada um com um valor próprio de renda, o índice faz uso de estatística para calcular a relação entre cada agrupamento e o seu vizinho, mostrando se um tem renda similar ao outro ou não. Com base nisso, os pesquisadores obtiveram os dois clusters avaliados: de baixa e alta renda. “Fizemos um corte em 0,3 no índice, então todas as favelas com valor acima dessa marca foram selecionadas e olhamos para as cidades nas quais essas favelas estavam localizadas. Observamos primeiro as favelas e depois as cidades”.
Além de reforçar que as comunidades brasileiras são espaços múltiplos, outro viés do trabalho é que a pesquisa leve a um novo olhar para a forma como as políticas públicas são estruturadas. Como urbanista, Carvalho observou o modo como o dinheiro público era alocado em projetos voltados para as comunidades, algumas vezes beneficiando áreas com uma infraestrutura já bem estabelecida, em vez de olhar para outros territórios em que as “pessoas mal podiam viver”. Para a autora, o estudo busca ajudar na construção de um desenho urbano que leve em consideração as diferenciações culturais, econômicas e sociais encontradas nas favelas.
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Camila Carvalho é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Especialista em Política e Planejamento Urbano pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ) e mestra em Planejamento Urbano e Regional também pelo IPPUR-UFRJ. Recebeu o Prêmio Maurício de Almeida Abreu do Instituto Pereira Passos em 2017 pela dissertação “Cidades dentro da Cidade: A estrutura socioespacial de favelas cariocas no período Lula”. Tem experiência profissional na área de projetos urbanos, especialmente (re)urbanização de favelas e habitação de interesse social, tendo atuado como arquiteta e urbanista em programas como Morar Carioca e Programa Minha Casa Minha Vida. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU – UFF), onde desenvolveu pesquisa sobre as escalas da desigualdade e segregação no Brasil urbano.
Vinicius Netto é professor permanente e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU-UFF), professor associado do Departamento de Urbanismo (TUR-UFF) e investigador principal do Centro de Investigação do Território Transportes e Ambiente da Universidade do Porto (CITTA FEUP). Possui doutorado em Advanced Architectural Studies (The Bartlett School of Graduate Studies, University College London UCL), pós-doutorado em Urban Informatics (Center for Urban Science and Progress, New York University NYU CUSP) e Desempenho Urbano (PNPD CAPES) e mestrado em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR-UFRGS). Publicou mais de 100 artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior, sendo também autor dos livros “The Social Fabric of Cities” (Routledge, 2017) e “Cidade Sociedade” (2014) e co-organizador de “A Cidade e suas Dimensões de Pesquisa” (2020), “Efeitos da Arquitetura” (2017) e “Urbanidades” (2012).